INTRODUÇÃO
Esse texto foi escrito entre
28/08/88 e 07/10/90. Durante esse tempo, de pouco mais de 2 anos, o paroquiano
anotou algumas observações feitas no sermão do padre, geralmente nas missas
dominicais.
Escrever alguma coisa sobre isso era
de uma necessidade avassaladora, funcionando como um analgésico para as
frustrações de se viver entre pessoas que se acomodam aos padrões culturais,
mesmo quando esses funcionam como mecanismos de dominação e alienação da pessoa
humana.
O clima ainda era temperado por
resquícios da ditadura militar e do absolutismo do clero católico da época
anterior ao Concílio Vaticano II.
O grande dia na igreja católica,
chamado até de “Salário mínimo da fé”, é a missa de domingo. A Comunidade era a
de N. S. Medianeira de Oswaldo Cruz, no bairro de Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro.
Todos os sermões foram proclamados pelo Pe. Adriano Rebelo, que tinha ares de
Europa por ser descendente de portugueses, além de demonstrar uma grande
cultura, viajando para os E.U.A., com amizades por lá. Ele tinha também um
cargo de juiz dos processos canônicos na Arquidiocese do Rio de Janeiro, junto
ao cardeal Eugênio Sales.
Relendo o texto, o autor descobre
que já tem modificações nas atitudes e modos de pensar daquela época, tanto
quanto à corporação do clero quanto à política, mas continua achando
interessante o testemunho dado naquela comunidade, assim como válidas muitas
das observações comentadas no texto “O leão e a floresta no planeta
desconhecido”.
Para variar, o autor está concluindo
esta introdução ao texto por volta da 11:00h do dia 01/12/13, depois de
assistir `a missa das 6:30h na Paróquia Imaculada Conceição do Jacintinho,
Maceió, celebrada pelo Pe. César, que seria uma quarta-feira no Planeta
Desconhecido. Nos avisos finais da missa, ele adverte que todo cristão e
paroquiano deve contribuir para a festa da Comunidade doando, entre outras
coisas, 1 garrafa de 2 litros de refrigerante. O mico foi obrigado a recorrer a
uma velha cascavel, na saída da igreja, com outras lagartixas por perto
franzindo as testas e arranganhando os beiços, e dizer: “Por mim, um caminhão
carregado de refrigerantes nem sairia da fábrica, pois não é uma bebida
saudável, seria muito melhor falar de sucos naturais”.
Atualmente, temos esse texto postado no site: www.repolitica.blogspot.com, que a pessoa deve procurar nas postagens de 2013, dentro do site. O ano de 2013 já contém 12 postagens. O texto “O leão e a floresta no planeta desconhecido” corresponde à postagem do mês de dezembro de 2013. Assim o leitor pode consultar, imprimir ou enviar o texto para outras pessoas. Convém salientar que somente o texto escrito pode ser facilmente enviado por E-mail, pois os desenhos inseridos no texto só podem ser apreciados com a consulta ao site.
Atualmente, temos esse texto postado no site: www.repolitica.blogspot.com, que a pessoa deve procurar nas postagens de 2013, dentro do site. O ano de 2013 já contém 12 postagens. O texto “O leão e a floresta no planeta desconhecido” corresponde à postagem do mês de dezembro de 2013. Assim o leitor pode consultar, imprimir ou enviar o texto para outras pessoas. Convém salientar que somente o texto escrito pode ser facilmente enviado por E-mail, pois os desenhos inseridos no texto só podem ser apreciados com a consulta ao site.
Maceió, 01/12/13
1. O PLANETA DESCONHECIDO
No nosso sistema solar existe mais
um planeta. Só que ainda não tinha sido descoberto pelos cientistas. Em muitas
coisas ele é parecido com o planeta terra, pois lá também se constatou a
existência de religiões. Em algumas outras coisas ele é diferente da terra,
como por exemplo, o calendário anual não coincide com o nosso. Lá não têm
pessoas, só animais. Não obstante, os animais de lá já tem um nível intelectual
bem mais desenvolvido do que os nossos aqui na terra.
No dia 24/12/88, também uma quarta-feira, o mico
chegou pontualmente ao local da reunião. Surpreendentemente o leão começou a
falar de diálogo, dizendo que os animais deviam se ouvir mutuamente. Aquele que
não se expressa diminui o diálogo. O leão continuou o seu discurso propalando
que não podia haver diálogo com autoridade, só na igualdade podia haver
o diálogo. Quem não dialoga é porque tem medo da verdade. O mico estava ficando
empolgado porque estava tudo coerente com o que ele havia estudado na escola.
Os papagaios e uma velha arara estavam apreensivos. O mico foi, aos poucos,
sendo influenciado pelo ânimo dos papagaios e começou a refletir: Quem seriam
os atores do diálogo? Onde? Em que circunstâncias? E desanimado, pensou... pelo
menos na grande reunião não poderia ser. Na reunião só fala o leão ou os
autorizados por ele, que devem ser extremamente obedientes. Nessa altura o leão
já estava falando de outras coisas e tinha começado a dar exemplos. Primeiro
ele falou de uma cutia que tinha planejado o assassinato do pai porque não a
deixava namorar, e que tinha se amasiado com um porco-espinho. Mas ele não
considerou todos os detalhes que por ventura estivessem incluídos nas
circunstâncias do caso, e que pudessem explicar o estranho comportamento da
cutia. Depois ele contou o caso de uma armadilha que matou alguns filhotes de
leão, quando eles retornavam de uma área onde os pais costumavam comer zebras.
O mico, que neste caso sabia de que se tratava, não achou certo a morte dos
leõezinhos, mas compreendeu que havia uma grande matança de zebras e de outros
animais indefesos, que viviam cercados e explorados por alguns leões das
redondezas. Pelo menos esse detalhe não deveria ter sido omitido, ou não
deveria ter sido contada a estória se não houvesse tempo suficiente para
abordagem de todos os aspectos importantes. Em terceiro lugar, o leão achou um
absurdo que os abutres, assim como outros animais, comercializassem um tipo de
erva proibida, capaz de viciar ou até causar a morte, sem, contudo mencionar o
motivo que leva os animais a esse tipo de procedimento: não há uma organização
social que permita a todos os animais as mesmas condições para viver
dignamente. O mico voltou para o seu galho revoltado com tantas denúncias
incompletas e unilaterais, frente a uma platéia compulsoriamente muda. O
jacaré, ao encontrar a lagartixa, arriscou um comentário: “É natural que o leão
emita esses pontos de vista, pois a sua opinião é formada a partir das notícias
obtidas nos grandes meios de comunicação, que são diretamente subsidiados e
geridos pelos leões”. A lagartixa franziu a testa e arreganhou os beiços num
sinal de desaprovação e medo, e foi tratando de se afastar do jacaré. O jacaré,
por sua vez, ficou muito triste e até agradeceu a censura disfarçada, pois
percebeu que estava adentrando em terreno perigoso. Voltou para o mangue
pensando em outras coisas.
3.
A PAZ É FILHA DA JUSTIÇA
No dia 31/12/88 estava o mico em
mais uma grande reunião geral, sobretudo porque ele mesmo achava que era a
única saída para o bom convívio entre os animais daquele planeta, e porque
concordava com muitas coisas que o leão dizia. Aliás, o mico sabia que os
estatutos da comunidade, frente aos quais o leão também deveria se curvar, eram
absolutamente saudáveis e corretos.
O leão apresentou um tigre e uma
onça como seus padrinhos e vindos de uma região longínqua. Por mais duas vezes
ele voltou a falar nos seus estimados padrinhos. Da última vez ele fez
referências às diversas fêmeas da comunidade, que tinham o péssimo costume de
ficar olhando os outros machos quando estes saíam de suas tocas para trabalhar,
e que essas fêmeas não faziam nada, ao contrário de sua madrinha, que era um
exemplo de trabalho. Nesse momento e de forma inusitada, a madrinha levantou o
dedo perguntando se podia falar. O leão acenou que sim. Foi um espanto geral
entre a bicharada, especialmente entre as galinhas de angola e as maritacas,
pois isso nunca tinha ocorrido antes. Imagine que alguém tivesse levantado o
dedo para perguntar se podia dizer uma coisa na grande reunião. Então a onça
começou a falar; “Eu trabalho porque não tem outro jeito, se pudesse, eu também
não trabalharia”. O leão engoliu em seco e voltou-se rapidamente para dar
continuidade aos afazeres da reunião. Pouco antes, durante o discurso, o leão
havia dito que todos querem a paz; mas a paz é filha da justiça e do amor. O
mico concluiu rapidamente que não podia haver paz sem justiça. O que ocorre
muitas vezes é apenas uma paz aparente, que mais parece uma indolência ou uma
alienação, que não é outra coisa senão o controle das pessoas através da
opressão, da supressão da informação, da expropriação, da propaganda, etc.
Nessa reunião o leão comunicou uma novidade, que foi a reorganização da
comunidade com um conselho de 12 membros. Todos os conselheiros foram
escolhidos e nomeados pelo leão. Finalmente o leão disse que não se sentia bem
com as cobranças de taxas por serviços, os quais decorriam de sua obrigação com
os estatutos, e, portanto ele se sentia obrigado a prestá-los gratuitamente.
Assim ele achava melhor que houvesse uma taxa de condomínio para suprir as
necessidades da comunidade. O mico passou os olhos pela platéia e constatou que
os animais permaneciam indiferentes, como, aliás, sempre ficam quando se tratam
de questões teóricas, talvez até por ser um padrão de comportamento ideal para
a grande reunião, uma vez que só o leão pode falar. A indiferença passa a ser
uma questão de sobrevivência. Para não ficar completamente desanimado, o mico
acredita que o gato tremeu um pouquinho as barbas, e a gata angorá distribuiu
um olhar para as outras gatas, quando o leão disse que a escolha dos membros do
Conselho foi ajudada por opiniões de membros da comunidade, e que ele
certamente levara em consideração.
4.
A IMPRENSA É MANIPULADA
No dia 12/02/89, também uma
quarta-feira, o mico voltava de suas férias e foi logo cumprir o seu dever
comunitário, comparecendo à reunião do leão. O leão declarou que um grupo de
leopardos verdes havia dominado todos os animais da floresta, durante 20 anos,
à custa de armas compradas com o dinheiro da própria comunidade. Com esse poder
também a imprensa foi manipulada. Nessa altura, o mico pensou: ...muita coisa
deve ter ocorrido por aqui durante a minha ausência. Mas o mico nada pôde
apurar, porque não há como ser ouvido na comunidade, e, portanto, se ele
perguntasse, nenhum outro animal responderia. Todos sabem que o leão não gosta
que se façam reflexões sobre o quotidiano. Mas uma coisa é certa: essa
declaração do leão está coerente com o que ele disse no dia 31/12/88: “A paz é
fruto da justiça e do amor”. Mais coerente ainda com os detalhes levantados
pelo próprio mico sobre a falsa paz, que é sustentada pela opressão e
pela supressão da informação. De fato, os leopardos ameaçavam provocar horríveis
sofrimentos nos animais que discordavam deles, reprimindo-os, e, portanto
fazendo uma opressão. Por outro lado, dificultavam a comunicação entre os
bichos, e conseqüentemente a sua auto-organização e superação de sua própria
alienação, através da manipulação da imprensa, ou seja, suprimindo as
verdadeiras informações. Continuando o discurso, o leão foi bastante concreto
com relação à administração da floresta ao dizer que uma eminente vereadora,
atual presidente da câmara, não ia durar muito. Mas mesmo assim, se um membro
da comunidade tivesse que morrer que enfrentasse a morte. É correto morrer.
Alguns leopardos que estavam na
reunião, após esse discurso do leão, ficaram sem saber o que fazer, pois o leão
sempre se mostrava amigo. Mas um leopardo mais experiente consolou os demais:
“O tempo é o senhor da razão. Com o passar do tempo, tudo será naturalmente
esquecido, pois a comunidade não tem o hábito de se reunir para falar e
refletir criticamente, nem pode haver correspondência entre os discursos e a prática
do dia-a-dia. Já foi dito que o discurso do leão deve ser recebido com
cuidadosa indiferença. Seria apenas uma precipitação achar que a seqüência
ver-julgar-planejar-agir tivesse continuidade a partir das grandes reuniões”.
O mico foi para casa um pouco
desconcertado, procurando recuperar o equilíbrio para poder voltar às próximas
reuniões. Apenas uma cascavel octogenária conversava sensatamente com o mico,
pois ela não tinha mais medo de morrer. Isso reanimava o mico para as próximas
reuniões.
5.
REUNIÃO DO CONSELHO
No dia 25/03/89, ocorreu uma reunião sem maiores
acontecimentos, a não ser a apresentação dos 12 conselheiros. Inegavelmente
todos poderiam ser classificados como obedientes, acríticos, desconhecedores
dos estatutos ou pelo menos incapazes de fazer uma correlação entre os
imperativos dos estatutos das reuniões e os fatos reais, de modo que o leão
nunca pudesse ser contestado por eles.
No dia 25/05/89 a comunidade foi convocada para uma
reunião extraordinária e lá foi o mico cumprir o seu dever. O leão estava muito
contente porque o leopardo verde, que havia sido eleito para a câmara dos
deputados centrais da floresta, havia proposto uma lei que prestigiava um dos
dias das reuniões, tornando-o feriado florestal. Os leões tinham tanta influência
entre os poderes constituídos da floresta a ponto de algumas de suas reuniões
serem motivo de decretação de feriados florestais. Maior alegria ainda foi
externada no final da reunião, quando o leão comunicou a intenção daquele
deputado de tornar feriado florestal outros dias de reuniões. Fez questão de
mencionar o partido do leopardo verde, feito deputado.
Na reunião do dia 29/07/89, o leão se mostrou muito
coerente: “Quem quiser se matricular para se tornar sócio dos círculos de
reuniões terá que ter padrinhos que pratiquem os estatutos. A matrícula será
adiada no caso dos padrinhos precisarem regularizar as suas situações.
Na reunião do dia 20/08/89 o leão
critica duramente os sócios que acendem mais velas do que são fiéis aos
estatutos. Há um hábito entre alguns animais, como as galinhas de angola e os
melros, de acender velas nos cruzamentos de trilhas, embaixo das árvores. Isso
é muito perigoso porque pode destruir parte da floresta, além de ser puro
desperdício.
6. AS TAXAS DA COMUNIDADE
15/10/89 – O leão faz recomendações
sobre as eleições. É época de se eleger o governante máximo da floresta. A
coordenação dos leões recomenda que não se deve abordar assuntos políticos, mas
isso não é de modo geral obedecido pelos diversos leões, administradores das
reuniões da floresta.
01/01/90 – Nessa reunião o leão se
referiu à morte de um ditador, num certo reino da floresta. Acontece que não se
pode matar, segundo os estatutos. Apesar disso, o leão insistiu com a idéia de
que a morte dos ditadores era um bom sinal. Ele também lembrou que fazer uma
floresta feliz e justa é dever de todos os animais. Todo animal deve pagar a
taxa e ajudar a construir a Casa de Reuniões.
7.
A LOTERIA VETERINÁRIA
07/01/90 – Nessa reunião o leão estava
irritado. Certamente vazou algumas fofocas, porque muitas maritacas e grilos
vão tagarelando quando saem das reuniões. Outros animais, como os beija-flores
e as gaivotas, vão conversando a caminho de casa, embora todos sejam
completamente mudos nas reuniões e nas imediações da casa de reuniões.
Uma dessas conversas deve ter
chegado aos ouvidos do leão, talvez através de uma de suas conselheiras. Então
ele disse que não tem nada que dizer que não vai pagar a taxa porque não sabe
onde vai ser empregado o dinheiro. E acrescentou: ... quem deve saber disso são
meus encarregados de recolher a taxa, e eles vão prestar contas depois.
Conforme os estatutos, dizia ele, cada um vai prestar contas do que fez, mesmo
que seja no fim da sua vida. A formiga achava que era mais interessante prestar
contas logo, ou melhor ainda, que todos pudessem fiscalizar a administração do
dinheiro, mais nada podia dizer. O leão continuava o seu discurso dizendo que
quanto mais um animalzinho dá dinheiro para as obras da Casa de Reuniões, mais
o seu dinheiro aumenta. O mico estava pensando, pois isso ele podia, falar não;
mas mesmo que ele falasse os outros animais não poderiam escutá-lo, pois a
tradição de que só o leão podia ser ouvido era forte demais. No pensamento, o
mico achava que uma administração participada ajudaria o desenvolvimento da
competência de cada membro da comunidade, produzindo uma comunidade mais forte
e capaz. Além disso, as desconfianças deixariam de existir, pois não haveria
lugar para fofocas. O mico só via uma dificuldade: a de que uma administração
participada e transparente não só impediria que qualquer animalzinho desviasse
verbas, mas evitaria também que certos leões dominadores lançassem mão de
verbas sem que os outros membros da comunidade soubessem. Isso parece ser
inaceitável da parte dos leões. O mico ia para casa desolado e só a velha
cascavel o ouvia, mesmo assim só porque não tinha mais o que perder, pois ela
também tinha por certo que os leões tem esse direito.
1) É injusto porque deixa sempre um
grande número de animais frustrados.
2) É injusto porque poucos ganham
sem trabalhar. Conseqüentemente corrompe a mente do jogador, pois se ele se
candidata a usufruir sem produzir, naturalmente perde o poder moral de criticar
um sistema que produza essa realidade (uma mão lava a outra...).
3) É injusto porque desperdiça um
grande número de horas que poderiam ser empregadas em trabalho produtivo. Essas
horas são desperdiçadas na operação do sistema, que em si é improdutivo.
4) É injusto porque tende empobrecer
o conjunto dos animais, uma vez que a soma do dinheiro obtido por um não é, em
geral, bem administrada.
5) É injusto porque enfraquece os
animais na sua luta pela produção e distribuição justa dos bens e utilidades,
estimulando a autofagia.
6) É injusto porque cria nos animais
a atitude dos felinos, que vê na carne do outro o seu alimento, pois é
impossível abraçar a idéia de constituir uma floresta justa, onde a
sobrevivência de todos seja garantida, e, ao mesmo tempo, participar de um jogo
onde uns se distanciam dos outros.
Sobre a herança o mico também
pensou: nem todas são justas. A herança é produzida e regulamentada por leis
criadas pelos animais. Como alguns animais dominam os outros, as leis acabam
sendo o produto dos que dominam, e, portanto sem garantia de que sejam justas,
enquanto houver dominação. Embebido nesses pensamentos o mico chegou ao seu
galho sem ter falado com algum outro animal. Do mesmo modo procederam todos os
outros animais, pois só ao leão cabia falar e ser ouvido.
04/02/90 – Nessa reunião o leão
criticou veemente a administração da floresta, nos seus diversos focos de
corrupção. Sobretudo os administradores da loteria veterinária, que retiveram o
prêmio de 100 milhões por 48 horas, mesmo depois de se apoderarem de 70 milhões
do total arrecadado. Criticou também o empréstimo compulsório sobre o custo de
alguns combustíveis, que ninguém sabe para onde foi. Nesse momento uma formiga
se lembrou do que o leão tinha dito sobre a prestação de contas da taxa para a
casa de Reuniões, na reunião de 07/01/90. No final da reunião, o leão lembrou
mais uma vez a obrigatoriedade do pagamento da taxa pelos animais. Disse que
eram ladrãozinhos os que não corrigiam o valor de sua taxa conforme a inflação.
Lembrou que os que querem moralizar são excluídos, mesmo no âmbito da
coordenação dos leões. A juriti sentiu u calafrio pela espinha, pois foi uma
grande ousadia do leão, dirigir uma crítica publicamente à coordenação
superior. O mico achou o discurso bem recheado de realidades vividas na floresta,
mas naquele momento pareciam apenas um sonho para os animais presentes, pois só
o leão as podia criticar, comentar, descrever, julgar e condenar.
8.
A DISCRIMINAÇÃO RACIAL
11/02/90 – Neste dia o leão estava
um pouco sentimental. Isso é possível, mesmo entre os leões. Fez comentários
sobre alguns capítulos dos estatutos e concluiu que matar não era somente tirar
a vida. Então contou como um casal de porcos matou um leão preto. O leão estava
nas dependências da Casa de Reuniões da sua jurisdição, quando um casal de
porcos apareceu para contratar uma cerimônia particular, a ser presidida pelo
leão responsável pelas reuniões, mas não sabia que poderia existir um leão
preto. Quando o casal descobriu que o leão preto iria presidir a cerimônia,
desistiu. O nosso leão foi então dar um passeio com o leão preto para
consolá-lo, dizendo que ele tirasse aquelas idéias da cabeça porque ele tinha muito
que fazer pela causa das reuniões. Mesmo assim, o mico achou que o problema do
leão preto não foi devidamente resolvido pelo nosso leão. O mico achou que o
sofrimento do leão preto tinha sua causa exatamente por ele ainda não ter
erradicado completamente o seu próprio complexo. Em suma, ele é ainda infantil
e alienado. Se ele tivesse consciência da beleza de sua cor preta e estivesse
engajado nos movimentos de libertação animal, ele teria respondido ao casal de
porcos com toda serenidade e bom humor: “Não faz mal, posso conseguir um leão
branco ou amarelo para vocês. É só falar com um dos meus colegas. É que por
aqui a bicharada acha bonita a cor preta, e eu sou chamado para algumas
cerimônias justamente por ser bonito.” Mas nas reuniões não há comunicação
verbal entre os assistentes, só o leão pode falar. O mico silenciou, assim como
todos os outros animais. Não se pode falar, mesmo que seja para resolver o
problema de um leão nos seus dias de sentimentalismo.
9.
CONFLITOS CONJUGAIS
Na reunião do dia 04/03/90 o leão
defendeu radicalmente as fêmeas de todos os animais. Foi um grande dia, a menos
do inconveniente de só o leão ter falado. O mico achou curioso o fato de que,
desta vez, talvez por exceção, um assistente interpelou o mico. Sim, o próprio
mico foi interpelado para um desabafo de um dos assistentes. Este dizendo que
discordava do ponto de vista do leão. O leão havia dito que se um animal der
uma chicotada em sua fêmea, ela deve revidar. O urubu achava que não deveria ser
assim e que o leão estava insuflando as fêmeas contra os machos. Uma vaca
contrapôs a colocação do urubu: “Estou de acordo contigo, se uma fêmea der uma
patada no seu macho, ele não deve revidar. Assim não teremos estímulos para
brigas entre casais.” O urubu não respondeu, mas não gostou da ironia. O mico
ficou sozinho a pensar: será que o silêncio dos animais e a subserviência ao
leão não seria muito mais a malignidade de cada animal do que um poder real do
leão.
A reunião do dia 11/03/90 foi monótona como todas as
outras no que diz respeito a discursos, pois só o leão falava e dava ordens.
Ele anunciou a posse do presidente da floresta. Como esses assuntos são
considerados inoportunos pela Confederação dos leões, o nosso leão mostrava
esse ar de rebeldia. A seguir ele frisou que as obras da Casa de Reuniões
estavam sendo executadas sem contribuições do exterior. Ele usou a palavra exterior
para designar um agrupamento de animais que vivem sob outra forma de
organização administrativa. Talvez o leão tenha dito isto para censurar um
leopardo verde que liderava uma iniciativa apoiada por entidades do exterior e
que, de certo modo, lhe causava desconforto por não estar completamente sob o
seu domínio. Essa alusão também se encaixava como crítica a um político que defendia
uma maior participação dos pequenos animais na administração da floresta. Um
gavião se sentiu constrangido ao ter que ouvir tudo aquilo sem poder
contra-argumentar com o seu ponto de vista, mas essa era a regra do jogo.
A seguir o leão declarou que as
obras da Casa de Reuniões foram sustentadas, durante vários meses, por um
parente rico de um dos membros da comunidade, o qual não fazia parte das
reuniões. Desta forma o leão procurava mostrar que as contribuições da
comunidade não eram suficientes para efetuar as obras, ao mesmo tempo em que
deixava claro que o andamento das obras não dependia tanto assim das
contribuições da comunidade, ou melhor, deixaria de depender se a comunidade
viesse a exigir alguma participação. Mesmo assim, fez questão de dizer que
estava orgulhoso daqueles que estavam se sacrificando para dar dinheiro para as
obras. A falta de contra-argumentação deixava o leão à vontade para desenvolver
qualquer tipo de raciocínio. No entanto havia liberdade de pensamento, ou seja,
qualquer assistente podia pensar desde que não comunicasse o seu pensamento,
principalmente através da linguagem falada. Assim o mico pensava: com essa
margem de manobra o leão vai sempre poder estar acima dos emudecidos e frágeis
ouvintes de seus discursos. Ainda mais porque alguém ou algum grupo de animais,
estranhos ao grupo de animais que freqüenta as reuniões, podem financiar os
projetos de leão. Como a floresta é dominada pelos animais que tem bastante
dinheiro, é de se esperar que as reuniões do leão sejam subsidiadas também por
eles. Desse modo, o leão se mostra imune ao boicote econômico, que poderia ter
sido uma forma “muda” da comunidade se opor à denominação do leão. Os estatutos
falam de amor, mas quem poderia entender que o amor fosse fruto da dominação. A
essa altura o mico pensou em dizer isso a alguns animais que lhe estavam
próximos, mas desistiu. Desistiu até porque seria inútil sem que esses tivessem
um conhecimento crítico dos estatutos. O mico finalmente suspirou e se pôs a
conversar com a cascavel, a caminho de sua casa, ou melhor, a caminho de seu
galho.
18/03/90 – O presidente eleito da
floresta confiscou todo o dinheiro que cada animal havia economizado, muitas
vezes à custa de muito trabalho, e até o dinheiro de certos felinos menos
poderosos. O mico estava curioso para saber qual seria a reação do leão, pois
esse tinha mostrado simpatia pelo candidato antes das eleições. Aconteceu que o
leão se mostrou irritadíssimo, deixando até de fazer o seu costumeiro discurso.
No fim da reunião ele criticou os baixos valores das ofertas para a Casa de
Reuniões. Em decorrência disso, ele iria cancelar as atividades noturnas com o
intuito de economizar no consumo de energia elétrica. Muitos animais, sobretudo
os vaga-lumes e os morcegos, gostariam de ter debatido as propostas e posturas
dos diversos candidatos. Mas em debate o leão nem podia ouvir falar, pois
somente a ele era permitido falar. E no dizer de um pássaro-ferreiro, que teve
o apelido de Francisco Sá Miranda (1495-1558), consta o seguinte:
“Sempre foi,
sempre há de ser.
Onde uma só
parte fala,
Sempre a
outra há de gemer”.
10.
O CANTO NAS REUNIÕES
25/03/90 – Nessa reunião o leão se
mostrou apático e um tanto ou quanto desapontado. Talvez fosse ainda o efeito
das medidas tomadas pelo novo Presidente, pois sabe-se que o dinheiro da Casa
de Reuniões era habitualmente aplicado no mercado financeiro. Os animais
pareciam aliviados porque, pelo menos temporariamente, a sua agressividade
encontrava-se amortecida. Apenas o canto foi afetado nesse dia. Acontece que a
tradição da floresta sempre foi a de ter as reuniões animadas com o canto vocal
e instrumental. Isso o leão ainda não tinha conseguido acabar por completo,
embora ele já tivesse ameaçado colocar um equipamento eletrônico para
substituir o canto dos animais. A explicação é muito simples: como o canto é
geralmente produzido com o auxílio dos bicos e bocas, ou seja, os mesmos
instrumentos que são utilizados para a comunicação verbal, há sempre o perigo
dos animais utilizarem esses mesmos recursos para falar. Pois bem, os hinos
programados para esse dia constavam dos anais de um curso de canto que havia na
floresta e que os leões dessa região sempre viam com desconfiança. Alguns
bem-te-vis, assuns-pretos, canários e jaçanãs sabiam a música de cor, pois
sempre freqüentavam os cursos de canto ou adquiriam as partituras. Acontece que
os leões daquela região acharam por bem publicar uma outra letra para uma das
músicas, seja como um artifício para desvalorizar o curso, seja pelo próprio
hábito de se manter isolados. Antes de começar as reuniões, o grupo de cantores se reunia apressadamente
para algum acerto final. Foi aí que uma
pata e uma galinha insistiram em manter a letra publicada pelos leões, enquanto
que um casal de curiós defendia a letra que tinha aprendido no curso e que
constava da folha impressa de todos os assistentes da reunião. No momento do
canto, a platéia inconscientemente seguiu a letra que tinha em mãos, apesar dos
cuidados dos conselheiros do leão em avisar antes para que a assistência não
cantasse essa música, mas deixasse apenas o coro cantar. Devido a esse
imprevisto, um membro do conselho foi ao microfone e repreendeu os assistentes
chamando-os de desobedientes. O mico ficou admirado pelo zelo e empenho do
conselho na defesa da ordem imposta pelo leão.
11.
SOBRE O TRABALHO ANIMAL
17/06/90 – Mais uma reunião para
trazer um novo alento de melhores dias para todos os animais da floresta. O
leão voltou a fazer os seus discursos, dessa vez mostrando interesse político e
social. Muitos ganham tão pouco e trabalham muito, dizia ele, enquanto outros
trabalham tão pouco e ganham muito. Falou do camelo que cobrava uma fortuna
para fazer a travessia dos outros animais no deserto, e do pica-pau que
explorava os outros animais quando estes precisavam cortar uma árvore, e assim
por diante. Citou o caso de regiões políticas da floresta, onde os animais eram
todos ricos porque trabalhavam. Até a coruja, que não entendia muito de
economia, ficou surpresa quando o leão tratou desse assunto sem falar na
especulação, nas trocas comerciais injustas entre as diversas regiões da
floresta, no domínio dos meios de produção por parte de alguns grupos de
animais em proveito próprio, que explicam muito melhor a pobreza dos que mais
trabalham. Se o mico soubesse desse pensamento da coruja, mas não soube e não
poderia saber, pois não é correto haver comunicação entre os animais, ele teria
juntado o seu raciocínio de que o discurso era muito mais para submeter os
animais ao trabalho submisso do que alertá-los para usufruírem dos frutos do
trabalho. Parecia muito claro para o mico que passar a idéia de que os animais
são preguiçosos, sem conscientizá-los de que estão submetidos a um sistema
econômico tirano, que dita o preço da mão de obra, é cooperar com o próprio
sistema e se colocar frontalmente contra o bem-estar dos animais. Inclusive sem
mencionar que esse sistema calcula os salários de modo que cada animalzinho
trabalhe cada vez mais, até morrer, sem, contudo ter direito ao que foi
produzido pelo seu trabalho. O mico sabia que esse procedimento era contrário
aos estatutos, mas não podia falar. Mesmo se falasse os animais não
entenderiam, porque quem já se viu um mico poder falar...
06/08/90 - O discurso do leão começou,
como sempre, com frases cheias de conteúdo e de indiscutível valor: “...há
animais que não tem maiores aspirações na vida, enquanto outros tem objetivos
perfeitamente definidos. Ele disse que a única coisa que desejava ás
macaquinhas, que desviaram um amigo seu do ideal de se tornar um animal com o
comportamento de um felino, era que quando uma delas estivesse numa ilha,
cercada por leopardos famintos, não encontrasse uma só árvore ou cipó para
subir”. A platéia mal se refez do susto, quando ele continuou: “...existem
certos preconceitos com as profissões; só porque os leopardos verdes andaram
comendo mais do que o necessário, e por apenas 20 anos, os animais mais jovens
não querem seguir a carreira dos leopardos verdes. Ainda bem que esse preconceito
está acabando porque milhares de jovens estão se inscrevendo no concurso para
entrar na academia dos leopardos verdes”. O tatu ficava admirado com a
naturalidade com que os animais ouviam o discurso do leão.
19/08/90 – Era uma quarta-feira. O
leão fez um discurso que se pode dizer dentro da linha.
Explicou que muitas práticas usadas nas reuniões não têm respaldo nos
estatutos, são decisões tomadas na Confederação dos leões por razões de
conveniência.
02/09/90 – Nessa reunião o leão fez
uma exposição didática dos estatutos. No final do discurso, chamou a todos de
“safados”, por não cumprirem fielmente os estatutos, incluindo ele também,
principalmente no que diz respeito ao cuidado que deve ser dispensado aos
animais carentes.
16/09/90 – Há dias que não há nada
para contar, apenas o leão fala de temas sem controvérsias. Há dias em que o
leão tem os seus momentos de lucidez. Coube ao mico voltar para o seu galho em
conversa amena com a velha cascavel. O tema tinha sido “O perdão”.
22/09/90 – Nesse dia o leão resolveu
contar o número de animais presentes à reunião. Era importante saber se estava
aumentando ou diminuindo. Ele explicou que o momento mais importante, e o de
maior responsabilidade, era o momento de votar. Ia acontecer as eleições para
preencher as vagas de legisladores da floresta. O hipopótamo pensava que o
momento mais importante não era bem um momento, mas a participação política
quotidiana; pertencer a um partido político, freqüentar reuniões e participar
dos debates. Se o hipopótamo pudesse ter falado, a paca teria completado o
pensamento dele, pois ela também pensava: se o animal não participa de um grupo
organizado, fica difícil conhecer o programa e ter bastante informações sobre
os candidatos. Ainda mais, continuava a paca a pensar, teríamos que ajustar o
candidato às nossas pretensões, depois controlá-lo, e se fosse o caso, cassar o
seu mandato logo que ele se desviasse do nosso programa. Muitos outros animais
pensavam, mas não podiam falar.
04/10/90 – Era uma reunião extraordinária.
Todos se dirigiram mais uma vez para a Casa de Reuniões, apreensivos de que se
repetisse a rotina de sempre. Era a comemoração dos 12 anos de profissão do
leão. Ele fez uma declaração de humildade, dizendo que tinha aprendido a mudar,
a deixar o antigo moralismo. Afirmou que havia apenas um animal que estava
perturbando a paz da floresta, mas não identificou o animal. Anunciou que tinha
recebido uma razoável quantia para comprar o piso da Casa de Reuniões, mas não
se sabe quem doou, nem de onde proveio o dinheiro (cerca de 50 salários
mínimos). A coruja pensou: “Voltam a se repetir os financiamentos anônimos,
como já tinha ocorrido na reunião de 11/03/90”.
07/10/90 – Cada fato que ocorria na
floresta era aproveitado pelo leão para os comentários nas reuniões. Nesse dia
foi a greve dos veterinários e das professoras. O leão achava que não devia
haver greve das atividades essenciais. Uma pombinha e uma gatinha angorá
ficaram muito sentidas com o ataque do leão, pois ganhavam uma miséria como
professoras de uma escola púbica. No final da reunião ele desdenhou dos
legisladores eleitos pelos animais, dizendo que os animais gostavam mesmo era
de ser enganados. Tudo isso se passou sem diálogo algum, pois só o leão podia
falar. Uma rolinha chegou a pensar se isso não causaria sérios problemas
emocionais no leão, pois todo animal necessita de um diálogo para testar as
suas próprias formulações. Mas dialogar, para a Confederação dos leões,
significa “amolecer”. Acontece que se o leão “amolecer”, será fatalmente
censurado pela Confederação. A Confederação exige controle completo das
reuniões. O leão fica sem saber o que fazer, pois a Confederação é muito forte.
Se ele não obedecer, será expulso. A pergunta paira no ar e atormenta
continuamente o leão: cumprir os estatutos ou ir de encontro aos ditames da
Confederação?
O mico, a cascavel, o hipopótamo, o
João-de-barro, a coruja, a cutia, as pombinhas e gatinhas angorás, o jacaré, os
curiós, a paca, a rolinha, o tatu etc., vão continuar assistindo às reuniões,
pois assim determinam os estatutos, com a esperança de que no fim tudo dê
certo.
12.
CONCLUSÃO – A floresta é uma ficção que não tem necessariamente uma
correspondência com a realidade, mas ajuda a refletir sobre a realidade.
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