PLATÃO – A justiça como um
meio-termo entre cometer e sofrer o mal
Dizem que cometer injustiça é, por natureza, um bem, e
sofrê-la, um mal. Mas, como é maior o mal recebido pelo que a sofre do que o
bem advindo ao que a comete, depois que os homens começaram a cometer e a
sofrer injustiças e a experimentar as conseqüências desses atos, descobriram os
que não tinham poder para evitar os danos nem para lograr as vantagens que o
melhor seria pactuarem-se a fim de não cometer nem padecer injustiças. Daí
surgiram as leis e os convênios mútuos, e chamou-se legal e justo àquilo que a
lei prescreve. Essa afirmam ser a origem e a essência da justiça: um meio-termo
entre o maior bem, que é cometer injustiça sem sofrer castigo, e o maior mal,
que é sofrer injustiça sem poder castigá-la. E a justiça, situada entre esses
dois extremos, é aceita não como um bem, mas como algo que se respeita devido à
incapacidade dos homens para cometer injustiça. Pois ninguém que mereça o nome
de homem se submeteria jamais a tais convênios se pudesse resistir. Louco seria
quem tal fizesse! Aí tens, ó Sócrates, a teoria geralmente aceita sobre a
natureza e origem da justiça.
Para compreendermos como os bons o são contra a sua
vontade e porque não podem ser maus, basta considerar o seguinte: demos a
todos, justos e injustos, permissão de fazer o que lhes aprouver e
observemo-los para ver aonde levam a cada qual os seus apetites; então
surpreenderemos em flagrante ao justo trilhando os mesmos caminhos que o
injusto, levado pelo interesse próprio, finalidade que todo ser é disposto pela
natureza a buscar como um bem, embora sejam desviados dessa tendência pela
força da lei e encaminhados para o respeito à igualdade. O melhor modo de lhes
dar essa licença de que falo seria sob a forma de um poder como o que teve
A história de Giges
em
outros tempos Giges, o antepassado de Creso, o lídio. Segundo a tradição, Giges
era pastor a serviço do rei da Lídia. Sobreveio certa vez medonha tempestade, e
um terremoto abriu uma grande fenda na terra, exatamente no lugar em que ele
apascentava suas ovelhas. Assombrado com o que via, desceu por aquela greta e
viu ali, entre outras maravilhas que a lenda relata, um cavalo de bronze, oco,
como portinholas, por uma das quais se agachou para olhar e viu que dentro
havia um cadáver de estatura, ao parecer, mais que humana, e que nada tinha
sobre si além de um anel de ouro na mão. Tirou-o Giges e saiu. Quando, segundo
o costume, se reuniram os pastores para preparar o relatório mensal ao rei
sobre o estado dos rebanhos, acudiu também ele com o seu anel no dedo; e,
estando sentado entre os outros, aconteceu-lhe, por casualidade, dar volta ao
anel virando-o com o engaste para a palma da mão; imediatamente deixaram de
vê-lo os que o rodeavam e, com grande surpresa sua, puseram-se a falar dele
como de pessoa ausente. Voltou novamente o anel com o engaste para fora e
tornou a fazer-se visível. Repetiu a experiência várias vezes, sempre com o
mesmo resultado: quando virava o engaste para dentro, tornava-se invisível;
quando para fora reaparecia. Constatado isso, tratou de fazer-se escolher como
um dos emissários que deviam ser enviados à corte; e assim lá chegou, seduziu a
rainha e, com sua ajuda, atacou e matou o rei, apoderando-se do trono.
Suponhamos, pois, que houvesse dois anéis como esse, um
Aplicação da história de Giges
dos
quais levaria o justo e o outro, o injusto; ninguém seria de natureza tão
adamantina que perseverasse na justiça, abstendo-se em absoluto de tocar no
alheio, quando podia, sem perigo algum, dirigir-se ao mercado e ali tomar o que
lhe aprouvesse, entrar nas casas e deitar-se com as mulheres que bem
entendesse, matar ou libertar pessoas a seu bel-talante – numa palavra,
proceder em tudo como um deus rodeado de mortais. Em nada difeririam os
comportamentos de um e de outro, que seguiriam o mesmo caminho. E podemos ver
aí uma boa demonstração de que ninguém é justo por sua própria escolha ou por
pensar que a justiça lhe convenha pessoalmente, mas sim por necessidade, pois
sempre que uma pessoa julga poder cometer uma injustiça impunemente, a comete.
E isso porque todos, no fundo, acreditam ser a injustiça muito mais proveitosa
para o indivíduo que a justiça. “E tem razão em pensar assim”, dirá o defensor
da teoria que exponho. Ainda mais: se houvesse alguém que, possuindo semelhante
talismã, se negasse a cometer jamais uma injustiça e apossar-se do alheio,
seria considerado, pelos que pudessem apreciar-lhe a conduta, como o mais
miserável dos idiotas – embora fizessem crer que o admiravam, ocultando-se assim
mutuamente os seus verdadeiros sentimentos de temor que teriam de ser vítimas
de alguma injustiça. Mas quanto a isso basta.
Ao injusto se conferirá poder e reputação
Agora, no que toca a decidir entre
as vidas dos dois homens de que falamos, o justo e o injusto, só estaremos em
condições de julgar com acerto se os considerarmos em separado; do contrário,
será impossível. E como os consideraremos em separado? Do seguinte modo: não
tiraremos nada ao injusto de sua injustiça nem ao justo de sua justiça, mas
encaremos a ambos como exemplares perfeitos dentro de seu gênero de vida. Acima
de tudo, seja o injusto como os outros mestres consumados de seu ofício; como o
piloto ou o médico provectos, que conhecem perfeitamente as possibilidades e
deficiências de suas respectivas artes, sabendo, por isso, manter-se dentro dos
limites; e se em alguma coisa fracassam, são capazes de repará-la. Assim também
o injusto, para ser grande na sua injustiça deve realizar com destreza as suas
más ações e passar inadvertido em tais cometimentos. O que neles se deixa
surpreender é um inepto, pois não há maior perfeição na injustiça do que
fazer-se passar por justo sem o ser. Por isso digo que devemos dotar o homem
perfeitamente injusto da mais perfeita injustiça, sem fazer dedução alguma, mas
deixando que, enquanto comete as maiores malfeitorias, granjeie a mais
inatacável reputação de bondade. Se em alguma coisa fracassar, seja capaz de
corrigir o seu erro; que possa defender-se pela palavra se alguma de suas más
ações vier a lume, e, se for preciso empregar a força, que o saiba fazer,
socorrendo-se de seu vigor e coragem e das amizades e recursos com que conte.
Coloquemos agora, ao lado desse
homem, o justo com sua nobreza e simplicidade, disposto como diz Ésquilo, não a
parecer bom, mas a sê-lo. Tiremos-lhe, pois, a aparência de bondade; porque se
parecer justo, terá honras e recompensas, e nunca saberemos se é justo por amor
à justiça ou a esses galardões. É preciso despojá-lo de tudo, exceto da
justiça, e imaginá-lo numa condição
O justo será despido de tudo, menos da justiça
de
vida oposta à do primeiro. Que, sem ter cometido a menor falta, passe por ser o
maior criminoso, para que sua virtude seja posta à prova e saia-se airosamente
do transe, sem se deixar abater pela infâmia e suas conseqüências; e que siga
impertubável até a hora da morte, sendo justo e passando por injusto. Assim,
tendo chegado ambos ao último extremo, um da injustiça e o outro da justiça,
poderemos decidir qual dos dois é mais feliz.
Cáspite, amigo Gláucon! – exclamei.
– Com que energia os deixaste limpos e lustrosos um depois do outro, como se
fossem estátuas, para que possamos julgá-los!
- Faço o melhor que posso –
respondeu. – E, sendo assim um e outro, não creio que seja difícil descrever
com palavras a classe de vida que espera a cada um. Vou tratar disso, portanto;
mas se minha linguagem te parecer demasiado dura, lembra-te que não falo por
minha boca mas em nome dos apologistas da injustiça. Dirão eles que, sendo essa
a disposição do justo, será flagelado, torturado, encarcerado, lhe queimarão os
olhos finalmente, após haver padecido toda sorte de males, o empalarão, para que aprenda a não
querer ser justo, mas a parecê-lo apenas. As
A experiência mostra ao homem justo que não deve
sê-lo, mas parecê-lo
palavras
de Ésquilo aplicam-se com muito mais acerto ao injusto que ao justo, pois é
este – dirão – quem na realidade acomoda sua conduta à verdade e não às
aparências, uma vez que não deseja parecer injusto, mas sê-lo.
Em primeiro lugar, manda na cidade,
apoiado em sua reputação de homem bom; toma como esposa uma mulher da família
que deseje, casa seus filhos com as pessoas de sua escolha, comercia e mantém
relações com quem lhe agrade e de tudo isso obtém vantagens e proveitos por sua
O injusto que aparenta justiça granjeará toda sorte de
prosperidade
própria
falta de escrúpulos em fazer o mal. Se se vê envolto em processos públicos ou
privados, poderá vencer e ficar por cima de seus antagonistas; e, vencendo,
enriquecerá e poderá beneficiar seus amigos, causar danos aos inimigos e
dedicar à divindade copiosos e magníficos sacrifícios e oferendas, com o que
honrará mais do que o justo aos deuses e àqueles homens que se proponha honrar,
de modo que, com toda a probabilidade, será mais amado do que ele pelos deuses.
E assim, Sócrates, segundo dizem, deuses e homens cooperam para tornar a vida
do injusto melhor do que a do justo.